- ESPERO PELO TÍTULO!




Cheguei à seguinte conclusão sobre tudo o que me ocorreu enquanto eu viajo olhando para aquelas fotos da nossa sessão: eu não me permitirei aceitar paixões momentâneas cheias de momentos passageiros como forma de sublimar o prazer à vida. 

Sabes por quê? Porque eu quero tudo desde o início. Desejo tudo de novo com você. Quero seus olhos de predador quando me olhavam com curiosidade e me despia com um único gesto. Quero sua boca a sugar minha boca. Desejo seus discursos gestuais na minha pele e suas tramas urdidas para futuros atentados. Quero fazer parte dos seus novos projetos. Quero de novo mais e mais surpresas inesperadas.  Quero tudo de novo! Eu quero! Não quero mais te procurar na agenda, te quero aqui: a silenciar as minhas tempestades e a atiçar meus incêndios. Quero que me obrigues a escalar esses preconceitos e a explorar as cavernas dogmáticas que eu mesma fui obrigada a construir.

Adoro você. Adoro com todos os corações possíveis. Adoro ser blindada pelo seu abraço. Adoro esse castelo que nos cerca, esse paraíso inumano que nos deixa nus de tempo e obrigações. Aliás, adoro jantar nua, só de scarpin preto, como se o epicentro do teu mundo fosse aos meus pés. Adoro, adoro, adoro! Adoro ser idolatrada e ser seu ícone de adoração. Adoro ser seu modelo e sua inspiração. Adoro ser sua criação e sua deusa. Adoro "você é meu oxigênio" sem ser sufocada por isto e sem "ser um mar". Adoro essa ilha que me contorna. Amo ser adorada por ti.

Por isto deixei de considerar as criticas. Ouvi-las é o mesmo que insultar-me. Não me importa que você seja Vulcano. Marte já morreu na ultima festa. Estou invariavelmente bela e determinada. Poucos ainda me reconhecem no que me tornei. Vejo o que não imaginava e sinto o que não sabia existir. 

E você abnegado e resignado, não pedindo nada, me extasia. Não quero ser reparada por esses doces danos implacáveis. Não mais irei permitir que você parta.

TREM NOTURNO PARA LISBOA


Em 'Trem noturno para Lisboa', Raimund Gregorius, professor de línguas clássicas em Berna, se levanta no meio da aula, abandona a sala e toma um trem para Lisboa. Em sua bagagem está um exemplar de reflexões filosóficas escrito pelo médico português Amadeu de Prado. Fascinado pelo livro, Gregorius decide investigar o autor. Em sua viagem, encontra pessoas que ficaram marcadas por seu relacionamento com esse homem excepcional, que o conheceram como médico, poeta ou combatente da ditadura.

Pascal Mercier é o pseudônimo literário do filósofo Peter Bieri. Nasceu em Berna em 1944 e até recentemente foi professor de Filosofia na Universidade de Berlim.

Peter Bieri
publicou, sob
o pseudónimo
PASCAL MERCIER
Trem Noturno a Lisboa, seu terceiro romance, vendeu em todo o mundo mais de 2.000.000 de exemplares desde que foi publicado em 2004 na Alemanha, onde ficou três anos na lista dos mais vendidos. O sucesso foi tanto que transformou o título do livro em uma expressão idiomática: vou tomar o trem noturno para Lisboa, ou seja, vou mudar de vida, tentar outros caminhos, buscar meus sonhos perdidos, aqueles sonhos que nem sequer tentei tornar verdadeiros.

UM OURIVES DAS PALAVRAS (alusão a Friedrich Nietzsche) - Dr. Amadeu Inácio de Almeida Prado, publicado em Lisboa pela Editora Cedros Vermelhos em 1975

Intertextualidade entre o livro Um ourives das palavras - de Amadeu Inácio Almeida Prado e O livro do desassossego - de Fernando Pessoa, Carta a meu pai - de Franz Kafka, O lobo da estepe – de Hermann Hesse [http://livros-que-li-e-reli.blogspot.com.br/2013/11/um-ourives-das-palavras-trem-noturno.html]


TRECHOS DO LIVRO

- "O 'o', que ela pronunciava surpreendentemente como um 'u', a sonoridade clara, estranhamente abafada do ê e o macio chiado no final soaram-lhe como uma melodia que, para ele, perdurou mais tempo do que na realidade, uma melodia que ele simplesmente adoraria ter escutado durante todo o resto do dia."

- "Haveria um mistério sob a superfície da atividade humana? Ou seriam as pessoas exatamente como se revelam através de suas ações explícitas?"

- "É um engodo achar que os momentos decisivos de uma vida, em que seus rumos habituais mudam para sempre, sejam necessariamente acompanhados de uma dramaticidade ruidosa e estridente, acompanhada de grandes surtos. (...) Na verdade, a dramaticidade de uma experiência decisiva para a vida é de natureza inacreditavelmente silenciosa."

- "Às vezes, temos medo de alguma coisa apenas porque temos medo de outra."

- "Havia pessoas que liam e havia as outras. Era fácil distinguir se alguém era leitor ou não. Não havia maior distinção entre as pessoas do que esta."

- "Quem sente dores ou medo não pode esperar."

- "Dizer alguma coisa para outra pessoa: como podemos esperar que aquilo possa surtir efeito? O fluxo de pensamentos, imagens e sentimentos que passa por nós tem uma força tal que seria um milagre se não inundasse simplesmente todas as palavras que outra pessoa nos diz, relegando-as ao esquecimento, a não ser que coincidentemente, muito coincidentemente, combinem com as nossas próprias palavras."

- "Mas o que é um ser humano sem segredos? Sem pensamentos e desejos que apenas ele próprio conhece?"

- "A imaginação, o nosso último santuário."

- "Como seria levar uma vida que se proíbe qualquer expectativa ousada e imodesta, uma vida em que somente houvesse expectativas banais, como a espera pelo próximo ônibus?"

- "Por que os vestígios do passado me entristessem, mesmo quando são vestígios de alguma coisa alegre?"

- "Viver o momento: soa tão certo e tão belo. Mas quanto mais desejo isso, menos percebo o que significa."

- "Como seria depois de ler a última frase? Sempre temera a última página, e a partir do meio do livro já o afligia periodicamente o pensamento de que teria de haver irremediavelmente uma última frase."

- "Será que tudo o que fazemos é pelo medo que temos da solidão?"

- "Eles riram e riram mais e mais, olharam um para o outro e sabiam que também estavam rindo sobre risos passados e sobre o fato de que se ri melhor daquilo que mais importa."

- "Dizer alguma coisa para outra pessoa: como podemos esperar que aquilo possa surtir efeito? O fluxo de pensamentos, imagens e sentimentos que passa por nós tem uma força tal que seria um milagre se não inundasse simplesmente todas as palavras que outra pessoa nos diz, relegando-as ao esquecimento, a não ser que coincidentemente, muito coincidentemente, combinem com as nossas próprias palavras."

- “Se é verdade que apenas podemos viver uma pequena parte daquilo que em nós existe, então o que acontece ao resto?”

- "Que pode - que deve - ser feito, com todo o tempo que temos pela frente? Em aberto e informe, leve como o ar na sua liberdade e pesado como chumbo na sua incerteza?"

- "É um desejo, um simples e nostálgico sonho, voltar a determinado ponto da nossa vida e poder tomar um rumo completamente diferente daquele que fez de nós quem somos?"

- “Quando falamos de nos próprios, sobre os outros ou simplesmente sobre coisas, o que pretendemos é — poderíamos dizer — nos revelar através de nossas palavras: Queremos dar a conhecer o que pensamos e sentimos. Permitimos que os outros lancem um olhar para dentro de nossa alma. (We give them a piece of our mind).”

- “[...] Adoro túneis. Eles são para mim, a imagem da esperança: em algum momento tudo voltará a ficar claro. Caso não seja noite. Às vezes recebo visitas no compartimento. Não sei como isto é possível, com a porta trancada e selada, mas acontece. Geralmente esta visita vem num momento impróprio. São pessoas do presente e do passado. Vem e vão, conforme querem, não têm respeito e me incomodam. Preciso falar com elas. É tudo provisório, descomprometido, voltado ao esquecimento, conversas de trem. Alguns visitantes desaparecem sem deixar rastro. Outros deixam rastros pegajosos e fétidos, não adianta arejar. Nestas horas quero arrancar todo o mobiliário do compartimento para trocar por um novo. A viagem é comprida. Há dias em que desejo que seja infinita. São dias invulgares, preciosos. Há outros em que fico aliviado por saber que haverá um ultimo túnel em que o trem parará para sempre.”

- “Força-te, força-te a vontade e violenta-te, alma minha; mais tarde, porém, já não terás tempo para te assumires e respeitares. Porque de uma vida apenas, de uma única dispõe o homem. E se para ti esta já quase se esgotou , nela não soubeste ter por ti respeito, tendo agido como se a tua felicidade fosse a dos outros... Aqueles, porém, que não atendem com atenção os impulsos da própria alma são necessariamente infelizes.”

- “As vezes, temos medo de uma coisa apenas porque temos medo de outra”. 

- “O verdadeiro encenador da nossa vida é o acaso— um encenador cheio de crueldade, misericórdia e encanto cativante.” 

- “A vida não é aquilo que vivemos, é aquilo que imaginamos viver.”

- “A imaginação é o nosso último refúgio.”

- “As pessoas não suportam o silêncio, isso significaria que elas teriam de se suportar a si próprias”

- “Alguém que realmente quer conhecer a si mesmo deveria ser um colecionador obcecado e fanático de desilusões, e a procura de experiências decepcionantes deveria ser, para ele, como um vício, na verdade como um vício dominante na sua vida, pois então ele compreenderia, com toda a clareza, que a desilusão não é um veneno quente e destruidor, e sim um bálsamo refrescante e tranqüilizante que nos abre os olhos para os verdadeiros contornos sobre nos mesmos.”

- “Quando deixamos determinado lugar, deixamos para trás um pedaço de nós, permanecemos lá, apesar de partirmos. E há coisas em nós que só podemos recuperar se voltamos para lá.”

- “Estremeço só de pensar na força não intencional e desconhecida, porém inexorável e inevitável, com que os pais deixam marcas nos seus filhos, as quais, como marcas de queimadura, nunca mais poderão ser eliminadas. “ 

- “Qualquer instante pode ser o último. Sem o mínimo pressentimento, no mais completo desconhecimento, vou transpor uma parede invisível atrás da qual não existe nada, nem sequer a escuridão. O meu próximo passo pode muito bem ser o passo através dessa parede. Não seria ilógico sentir medo disso, uma vez que nem vou vivenciar esse súbito apagar e sabendo de antemão que tudo é assim mesmo?”

- “As histórias que os outros contam sobre nós e as histórias que nós mesmos contamos – quais delas se aproximam mais da verdade?”

- “Medo se tem de algo que ainda está por acontecer, que ainda temos que enfrentar.”

- “Cheguei a pensar que o espírito de Amadeus era, antes de mais nada, linguagem, – que a sua alma era feita de palavras.”

- “Um ruído alto, que parecia vir de uma distância medieval.”

- “Silencioso como um navio sepultado no fundo do mar.”

- “Na escuridão, o ranger da porta parecia bem mais ruidoso do que durante o dia, mais ruídoso e mais proibitivo.”

- "Quando a ditadura é um fato, a revolução é um dever"

- "O real diretor da vida é o acidente, um diretor cheio de compaixão atroz e charme encantador."

- "Na juventude, vivemos como se fôssemos imortais, Conhecimento de mortalidade dança em torno de nós como uma fita de papel frágil que quase não toca a nossa pele. Quando, na vida isso muda? Quando é que a fita apertar, até que finalmente ele estrangula-nos?"

- "Nós vivemos aqui e agora, tudo antes e em outros lugares é passado e esquecido na maior parte".

FONTE:


DISCURSO DE Amadeu Prado no LICEU CATOLICO:

Reverência e aversão perante a palavra de Deus.

Não quero viver num mundo sem catedrais. Preciso de sua beleza e de sua transcendência. Preciso delas contra a vulgaridade do mundo. Quero erguer o meu olhar para seus vitrais brilhantes e me deixar cegar pelas cores etéreas. Preciso do seu esplendor. Preciso dele contra a gritaria no pátio da caserna e a conversa frívola dos oportunistas. Quero escutar o som oceânico do órgão, essa inundação de sons sobrenaturais. Preciso dele contra a estridência ridícula das marchas. Amo as pessoas que rezam. Preciso de sua imagem. Preciso dela contra o veneno traiçoeiro do supérfluo e da negligência. Quero ler as poderosas palavras da Bíblia. Preciso da força irreal de sua poesia. Preciso dela contra o abandono da linguagem e a ditadura das palavras de ordem. Um mundo sem essas coisas seria um mundo no qual eu não gostaria de viver.

Mas existe ainda um outro mundo no qual eu não quero viver: um mundo em que se demoniza o corpo e o pensamento independente e onde as melhores coisas que podemos experimentar são estigmatizadas e consideradas pecado. O mundo em que nos é exigido amar os tiranos, os opressores e assassinos, mesmo quando seus brutais passos marciais ecoam atordoantes pelas vielas ou quando se esgueiram, silenciosos e felinos, como sombras covardes pelas ruas e travessas para enterrar, por trás, o aço faiscante no coração de suas vítimas. Entre todas as afrontas que se lançaram do alto dos púlpitos às pessoas, uma das mais absurdas é, sem dúvida, a exigência de perdoar e até de amar essas criaturas. Mesmo se alguém o conseguisse, isso significaria uma falsidade sem igual e um esforço de abnegação desumano que teria que ser pago com a mais completa atrofia. Esse mandamento, esse desvairado e absurdo mandamento do amor para com o inimigo, serve apenas para quebrar as pessoas, para lhes roubar toda a coragem e toda a autoconfiança e para torná-las maleáveis nas mãos dos tiranos, para que não consigam encontrar forças para se levantar contra eles, se necessário, com armas. 

Venero a palavra de Deus, pois amo a sua força poética. Abomino a palavra de Deus, pois odeio a sua crueldade. Este amor é um amor difícil, pois tem que distinguir constantemente entre o brilho das palavras e a subjugação verborrágica a uma divindade presumida. Este ódio é um ódio difícil, pois como é que podemos nos permitir odiar palavras que fazem parte da própria melodia da vida nessa parte da Terra? Palavras que para nós foram dadas como finais, quando começamos a pressentir que a vida visível não pode ser toda a vida? Palavras sem as quais não seríamos aquilo que somos?

Mas não nos esqueçamos: são palavras que exigem de Abraão que sacrifique o seu próprio filho como se fosse um animal. O que fazer com a nossa ira quando lemos isto? Um Deus que acusa Jó de disputar com ele quando nada sabe e nada entende? Quem foi que o criou assim? E por que seria menos injusto quando Deus lança alguém no infortúnio sem motivo do que quando um comum mortal o faz? E Jó não teve todos os motivos para a sua queixa?

A poesia da Palavra divina é tão avassaladora que cala tudo e reduz toda e qualquer contestação a um uivo lastimável. É por isso que não se pode simplesmente pôr a Bíblia de lado, mas ela deve ser jogada fora assim que estejamos fartos de suas exigências e do jugo que ela nos impõe. Nela, manifesta-se um Deus avesso à vida, sem alegria, um Deus que quer restringir a poderosa dimensão de uma vida humana – o grande círculo que descreve quando está em plena liberdade – a um só e limitado ponto de obediência. Carregados com o fardo da mágoa e o peso do pecado, ressequidos pela subjugação e pela falta de dignidade da confissão, a testa marcada pela cruz de cinza, devemos marchar em direção à sepultura, na esperança mil vezes contestada de uma vida melhor a Seu lado; mas como pode ser melhor ao lado de alguém que antes nos privou de todos os prazeres e de todas as liberdades?

E, no entanto, as palavras que vêm de Deus e para ele se dirigem são de uma beleza avassaladora. Como as amei nos tempos de coroinha! Como me embriagaram no brilho das velas do altar! Como pareceu claro, tão claro quanto a luz do sol, que aquelas palavras fossem a medida de todas as coisas! Como parecia incompreensível, para mim, que as pessoas dessem importância também para outras palavras, quando cada uma delas não podia significar mais do que dispersão desprezível e perda da essência! Ainda hoje paro quando escuto um canto gregoriano, e durante um instante irrefletido fico triste que este estado de embriaguez tenha dado lugar irremediavelmente à rebelião. Uma rebelião que se ateou em mim como uma labareda quando, pela primeira vez, escutei estas palavras: sacrificium entellectus.

Como podemos ser felizes sem a curiosidade, sem questionamentos, dúvidas e argumentos? Sem o prazer de pensar? As duas palavras que são como um golpe de espada que nos decapita não significam nada menos senão a exigência de vivenciar nossos sentimentos e nossas ações contra o nosso pensar, são um convite para uma dilaceração ampla, a ordem de sacrificar precisamente o núcleo da felicidade: a harmonia interior e a concordância interna de nossa vida. O escravo na galé está acorrentado, mas pode pensar o que quiser. Mas o que Ele, o nosso Deus, exige de nós, é que interiorizemos com nossas próprias mãos a escravidão nas profundezas mais profundas e que, ainda por cima, o façamos voluntariamente e com alegria. Pode haver escárnio maior?

Em sua onipresença, o Senhor é alguém que nos observa dia e noite, que a cada hora, cada minuto, cada segundo registra nossas ações e nossos pensamentos, nunca nos deixa em paz, nunca nos permite um momento sequer em que possamos estar a sós conosco. Mas o que é um ser humano sem segredos? Sem pensamentos e desejos que apenas ele próprio conhece? Os torturadores, os da Inquisição e os atuais, sabem: corte-lhe a possibilidade de se retirar para dentro, nunca apague a luz, nunca o deixe a sós, negue-lhe o sono e o sossego, e ele falará. O fato de a tortura nos roubar a alma significa: ela destrói a solidão com nós mesmos, da qual necessitamos como do ar para respirar. O Senhor, nosso Deus, nunca percebeu que, com sua desenfreada curiosidade e sua repugnante indiscrição, nos rouba uma alma que, ainda por cima, deve ser imortal?

Quem é que realmente quer ser imortal? Quem quer viver por toda a eternidade? Como deve ser tedioso e vazio saber que não tem a menor importância o que acontece hoje, este mês, este ano, pois ainda sucederão infinitos dias, meses, anos. Infinitos no sentido literal da palavra. Alguma coisa ainda contaria, neste caso? Não precisaríamos mais contar com o tempo, não perderíamos mais oportunidades, não teríamos mais que nos apressar. Seria indiferente se fizéssemos alguma coisa hoje ou amanhã, totalmente indiferente. Diante da eternidade, negligências milhões de vezes repetidas se tornariam um nada e não faria mais sentido lamentar alguma coisa, pois sempre haveria tempo para recuperar. Não poderíamos nem mesmo nos entregar à simples fruição do dia, pois essa sensação de bem-estar decorre da consciência do tempo que se esvai, o ocioso é um aventureiro perante a morte, um cruzado contra o ditado da pressa. Onde ainda existe espaço para o prazer em esbanjar tempo quando existe tempo sempre, em todo lugar, para tudo e para todos?

Um sentimento não é idêntico quando se repete. Tinge-se de outras nuances pela percepção do seu retorno. Cansamo-nos dos nossos sentimentos quando se repetem muitas vezes ou duram demais. Na alma imortal surgiria, portanto, um tédio gigantesco e um desespero gritante perante a certeza de que aquilo nunca acabará, nunca. Os sentimentos querem evoluir, e nós com eles. São o que são porque repelem o que já foram e porque fluem em direção a um futuro onde mais uma vez se afastarão de nós. Se esse caudal desaguasse no infinito, milhares de sensações teriam que surgir dentro de nós, que, acostumados a uma dimensão limitada de tempo, nunca conseguiríamos imaginar. De modo que, pura e simplesmente, nem sabemos o que nos é prometido quando ouvimos falar da vida eterna. Como seria sermos nós próprios na eternidade, sem o consolo de podermos, um dia, vir a ser redimidos da obrigação de sermos nós? Não o sabemos, e o fato de nunca o virmos a saber representa uma bênção. Pois uma coisa podemos estar certos: seria um inferno, esse paraíso da imortalidade. 

É a morte que confere o instante a sua beleza e o seu pavor. Só através da morte é que o tempo se transforma num tempo vivo. Por que e que o Senhor, Deus onisciente, não sabe disso? Por que nos ameaça com uma imortalidade que só poderia significar um vazio insuportável?

Não quero viver num mundo sem catedrais. Preciso do brilho de seus vitrais, de sua calma gelada, de seu silêncio imperioso. Preciso das marés sonhadas do órgão e do sagrado ritual das pessoas em oração. Preciso da santidade das palavras, da elevação da grande poesia. Preciso de tudo isso.  Mas não menos necessito da liberdade e do combate a toda a crueldade. Pois uma coisa não é nada sem a outra. E que ninguém me obrigue a escolher.

FONTE:

BILHETE

Você esteve em casa de novo e eu não estava lá para te receber. Temos uma sucessão de coincidências que nos deixa sempre esperando por um novo desencontro. Será que você só aparece quando não estou ou eu nunca estou onde você se encontra? Na semana passada, te esperei com um filme francês, uma pizza italiana e um vinho português mas, quase que resignadamente, sabia que você não viria à este lugar tão equidistante da civilização cosmopolita. O que me deixou felicíssimo foi perceber seus beijos. Vermelho fire, que bom que você gostou do batom! Tenho certeza que deixaram seus lábios mais lindo do que são realmente. Gosto de acreditar que esses beijos na parede eram para mim. Quarta-feira, às sete horas, ficarei de plantão à porta, esperando a faxineira: - não limpe essa parede, não apague a minha felicidade de voltar para casa - direi eu à senhora.

Espero que você tenha levado esse bilhete.

Com amor, Fã.

GOSTO DE ...

  • Caminhar com o intuito de esquecer
  • Cozinhar para satisfazer, eu e outros
  • Filmes por que me isolam da realidade
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  • Livros por que ensinam a valorizar o momento