A IMPORTÂNCIA DE UMA CARTA

Depois de ler o texto do Carpinejar - A IMPORTÂNCIA DE UMA CARTA, que me apropriei do título - lembrei-me das cartas que remetia.

Para você em especial: você se lembra da ultima carta que você enviou a um amigo(a)? Para outros em geral: será que alguma vez recebeu uma carta em casa sem ser correspondência comercial, panfleto ou outro aviso impresso aos milhares? Estranharia se recebesse uma carta? Quem sabe não deixaria para ler depois, pois acabou de receber um e-mail, uma mms ou uma sms no celular?


Ultimamente, é cada vez mais raro receber cartas, cartão postal e ou mesmo recados escritos à mão – tal procedimento era corriqueiro quando a vida não era tão digital como a de hoje.

Cartas são de uma época que quem escrevia tinham tempo para escrever, cultivar amizades e amores, apesar dos afazeres diários. Não quero dizer com isso que hoje não há amizades ou amores por “correspondência-eletrônica”. É que hoje falta ideia mesmo! Mas o pior é saber que a maioria não “sabe” escrever além dos truncamentos eletrônicos e das correções automáticas de software. Diferentemente de “ontem” a preocupação hoje é de viver só o presente com olhos postos na neblina que cobre o futuro. Esperar uma semana ou até um mês, dependendo do lugar, por uma resposta de uma mensagem é quase tratado como real descaso.

Escrever uma carta trazia em si um desapego ao mundo a sua volta. Um recolhimento em busca de fatos importantes a serem repassados. Uma narrativa sobre o que se vive, passou ou sonha realizar. Escrever uma carta era quase um ato de introspecção, uma reflexão “cursiva”. Às vezes essa carta era escrita durante dias em pequenos papeis, em blocos, anotados no dia a dia e guardados para que, num determinado momento, iluminado pela saudade e pela satisfação de “estar conversando” com aquela pessoa, iria escrever a carta. 

Era pura entrega. Para o bem da verdade, a carta é um produto artesanal. Você produz tudo, ou quase tudo. Com a matéria prima certa e uma dose de criatividade você transforma atenção, carinho e afeto em uma carta. Todo esse trabalho manufaturado para demostrar a pessoa o quanto ela é importante. É emocionante, mesmo que seja um pequeno bilhete. É uma experiência única. E escrever tinha um certo ritual.

Pensar no tempo entre o envio e o recebimento da resposta pode parecer meio bizarro, mas existia um intervalo pré-concebido que descobríamos depois das primeiras cartas: eram tantos dias para chegar ao destino, o prazo para leitura, o tempo para escrever a resposta e o período da remessa. Claro que isto era muito por estimativa, mas existia um tempo calculado.

Quem escrevia sabia que nunca se devia postar na sexta, pois ela iria seguir somente na segunda. Dois preciosos dias que podiam ser aproveitados a escrever. 

Onde escrever? Bloco, folhas avulsas ou em grandes formatos (pedaços de rolo de papel de embrulho para presentes cuja estampa escolhida também levaria uma mensagem intencional). Seja qual for o papel não podia haver rasuras, dúvidas e enganos. A escrita era única e bela. Você escolhia a caneta ou lápis ou “a BIC Rollon” ou talvez giz de cera ou quem sabe, carvão. Houve um tempo que as canetas esferográficas tinham perfume na sua combinação. Cada cor com a seu perfume.

Talvez o detalhe mais importante depois da mensagem era a dobradura das folhas. Quase um origami. Certamente você nunca deva ter notado como uma carta estava dobrada. Afinal o mais comum é a de três partes com duas dobras. Para cada carta, cada intensão a passar haveria uma dobradura. Escrevia-se uma mensagem, uma frase no espaço das dobras que permitia se ler enquanto ia desdobrando-a. Cada dobradura era um sonho a parte.

Talvez você nunca pensou na capacidade que a inclinação de uma folha tem no “desenho da letra”? Todas  ficam lindas, todas elas no mesmo sentido, com o mesmo tamanho e com o mesmo espaçamento. Eu tinha a preocupação de não usar jornal como apoio da folha que escrevia, pois a tinta ficava marcada do outro lado da folha as letras espelhadas. Se o assunto era extenso iria escrever frente-e-verso, caso contrário no verso da folha estaria os desenhos, frases, fotos coladas ou aquela flor ou uma folha de árvore. Às vezes, as cartas eram simples respostas das cartas anteriores intercaladas com algumas perguntas curiosas!

As fotos eram um item a parte. Não poderia ser muitas, pois aumentava o volume e o peso da correspondência e consequentemente o preço. Tais fotos levavam intimidade e dava veracidade à carta e fortalecia a amizade. As fotos quase sempre iam com dedicatórias no verso. Às vezes, eram fotos suas, das férias, de um aniversário ou cartões-postais de sua cidade. Quase sempre com longas descrições no verso de locais e de pessoas. Imagine a sorte que era ter amigos que moravam na Europa ou Estados Unidos? Recebendo “postcard” de lugares fantásticos?

A preocupação de escolher o envelope, a cor, se teria desenho ou decoração se juntava ao fato que eles deveriam ser RPC: recomendado pelo correio, pois não servia qualquer envelope. Dependendo do tamanho da carta e do envelope era possível fazer o envelope em casa desde que as medidas fossem padrão.

Depois de tudo pronto, a mensagem escrita ou como diriam os mais antigos: a missiva. Realizada a dobradura, tendo subscritado o envelope, há que ir ao Correio. Selar, enviar e constatar a pior parte de todo esse processo: esperar a resposta.
- Poderia me dizer quando essa carta chega ao destino?
Era inevitável essa pergunta. Contava-se nos dedos os dias de viagem, a distribuição e a entrega na casa.

Como não vibrar com a expectativa de receber e ler uma carta de alguém que dedicou um tempo para te escrever por que você é especial para essa pessoa e ela deseja demonstrar afeto, carinho, atenção e fazer a diferença pra você valorizando tua amizade, acariciando teu coração, alegrando tua vida e satisfazendo teu ego.

O grande tesouro de certas cartas era sensação mágica de tocar em algo que alguém escreveu especialmente para você. Antes de abrir esse baú de riqueza sentimental primeiro detínhamos em analises do envelope, selos e de como o envelope foi subscrito. Nada estava ali ao acaso. Sempre havia uma sutileza que não podia passar despercebida. 

Você está vendo a letra da pessoa, o papel onde ela manuseou. A carta é tátil, resgata a proximidade e o contato físico que foram perdidos com essa comunicação digital. Em suma, representa a pessoa que enviou a carta. É como se a pessoa estivesse junto de você conversando, contando fatos. Lembro do ato de cheirar o envelope. Era fantástico saber que aquele perfume foi colocado ali para você senti-lo. Era a assinatura olfativa. Aquele era o perfume dela. Depois de todo o ritual de abri-la sem rasgar, ela era lida, relida, lida novamente. E esse vínculo entre escritor e leitor, tornava a amizade mais duradoura e quase perene. As cartas são guardadas eternamente, ad eternum. 

As cartas são simples “ensaios existencialistas” talvez por isto haja tamanha carga de sentimentos nas entrelinhas. São objetos pessoais e por isto escrito á mão e carregados de significados. Raiva, ódio (com letras grandes, garranchos e escritos com forças). Amor, paixão (com flores, desenhos e odor). Tristeza, saudade (com folhas molhadas de lágrimas) e outros que a sua imaginação pode alcançar.

As cartas contem mensagens subliminares, desejos escondidos, informações primordiais e estava de cheia de códigos. Elas nem sempre se enquadravam no romântico ou como diziam antigamente como “cartas de amor”. Assim como hoje nem toda mensagem, ‘torpedo’ ou e-mail que esteja carregado de sentimentos pode ser considerado um “relacionamento sério”. Há inúmeros livros cujo titulo caracterizam bem isto: “cartas de – para” ou simplesmente “as cartas de fulano(a)”.

Mas tudo isto é passado. Hoje não há mais tempo para esses arcadismos emocionais. A sociedade nos fez ser efêmeros e rápidos, sem tempo para pensamentos e reflexões e sim ágeis com reações “pré-pró-ativas”. Estamos à mercê da comprovação e da constatação da necessidade de credibilidade, confiança, o medo generalizado e da tão ansiada privacidade que acabou com a liberdade que nos aprisiona numa senha. Hoje há o medo de arruinar a liberdade se passar o numero do telefone, imagine o caos existencial que se abateria sobre a pessoa ao divulgar o endereço ou cidade onde mora? Claro que sempre houve a possibilidade de uma caixa postal numa agência dos Correios.

As cartas você sabia que quem lhe escrevia era uma pessoa. De certa forma você “a conhecia”. Havia sessões em diversas revistas com pedidos de correspondência a partir uma mera descrição. Mesmo aquelas que você nunca viu e talvez nunca venha a vê-la, em algum momento houve uma prova de vida. Você acreditava na letra (mesmo que sejam aquelas letras horríveis e ilegíveis) e na intensão sutil que permeava a carta: amizade. Gente falsa e má sempre houve, ainda há hoje e com certeza existirá amanhã. Essa desconfiança elevada juntamente com a rapidez como as coisas são resolvidas sentenciou o fim do endereçamento de cartas tornando-o meramente comercial.

Se você escreve uma carta para alguém é o claro sinal de que a pessoa é importante para você. Se você recebe uma carta de alguém é o claro sinal que você é uma pessoa importante para ela. Se você não enviou uma carta não há possibilidade de receber uma carta.

Se ainda não escreveu uma carta, escolha um(a) amigo(a) e experimente essa sensação!

Essa prova de amizade é mão dupla!

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